domingo, 17 de fevereiro de 2013

64% DA POPULAÇÃO É A FAVOR DAS COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES

EDUARDO GUIMARÃES
Chega a ser surpreendente que 64% dos brasileiros apoiem uma política pública que foi tão demonizada e que a mídia até hoje impede que seja defendida equitativamente
No começo, fizeram-se as trevas. Um obscurantismo democrático só comparável ao da ditadura militar se abateu sobre a sociedade brasileira em forma de tentativa dos seus setores mais abastados de imporem a todos uma adesão incondicional à manutenção de privilégios injustos a um seu setor literalmente microscópico.
Apesar de a política pública (mal chamada) de cotas "raciais" ter surgido em universidades estaduais do Rio de Janeiro alguns anos antes, o que desencadeou uma interminável cruzada midiática contra si foi a lei federal 4.876/2003, instituída ao fim do primeiro ano do governo Lula.
A elite étnica, econômica e regional que sempre mandou e demandou no país começou a ver, ali, o embrião do que seria aquele governo, ou seja, um governo que, pela primeira vez na história, ergueria dezenas de milhões da pobreza em que haviam sido esquecidos e os tornaria parte de uma nova "classe média" que, em poucos anos, abrigaria a maioria deste povo.
O Brasil, então, em um mundo em que há cerca de duas centenas de nações ocupava desonrosa posição entre os cinco mais socialmente injustos, perdendo em injustiça social e concentração de renda somente para países miseráveis da África e da América Latina.
Desde a redemocratização, obtida por fadiga de material após duas décadas de uma ditadura militar em que a desigualdade econômica, étnica e regional se aprofundara como nunca antes, tal herança de exclusão social que conflagrara o país e o colocara em virtual guerra civil não refluíra praticamente nada.
A partir de 2003, porém, essa "herança maldita" começaria a ser combatida.
Um dos fatores que, em poucos anos, criaria uma nova "classe média", por estranho que pareça em um país com Educação ainda tão frágil foi justamente o acesso dos mais pobres ao ensino. E, sobretudo, ao ensino universitário, até então reservado, quase que exclusivamente, aos brancos de classe média e alta do Sul e do Sudeste.
Fazer faculdade, no Brasil, em maioria estatística avassaladora era coisa para filhos de famílias de classes média ou alta, de ascendência indo-europeia e brancas do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, e olhem lá.
Negros e mestiços de negros com outras etnias, em nova maioria estatística avassaladora estavam condenados a jamais concluírem de fato os estudos, o que significava nunca chegar ao ensino superior.
O que ocorria no Brasil é que os impostos da maioria pobre – que, à diferença da micro minoria extremamente abastada, não tem como sonegar porque paga imposto embutido nos produtos de consumo básico – financiavam os estudos de ricaços em universidades públicas e gratuitas.
Aos pobres – sobretudo aos negros do Norte e do Nordeste, onde são maioria esmagadora – não havia opção alguma para chegarem às universidades estaduais e federais, pois as instituições tinham provas duríssimas de ingresso para as quais não conseguiam se preparar tendo estudado em escolas públicas nas quais o ensino veio piorando a passos largos ao longo do século passado.
Além disso, negros, pobres e nordestinos ou nortistas não conseguiam adquirir bens culturais de que os brancos de classe média ou alta do Sul e do Sudeste dispunham à farta, tais como viagens, livros, cinema, teatro etc.
Vale explicar que os negros, pobres, nordestinos ou nortistas alijados do ensino superior não residiam apenas em suas regiões natais, mas muito no Sul e no Sudeste, para onde seus pais e avós haviam emigrado em meados do século XX em busca de uma vida melhor.
O vestibular tradicional, desde sempre, mantivera uma massa étnica, econômica e geográfica fora do ensino superior e uma minoria com essas características opostas dentro dele, pois não havia como jovens tão pobres, em contingente minimamente aceitável, disputarem com outros jovens tão favorecidos pela sorte.
Cavalgando, então, um autoengano hipócrita e conveniente sob todos os aspectos, essa elite que reservara cotas de cem por cento para si nas universidades atribuía sua vantagem nos vestibulares ao que chamava de mérito, mas que não passava de sorte de ter nascido em uma família com recursos financeiros e com a etnia "certa".
Nos meios sociais mais elitistas (nos quais, é bom que se diga, este que escreve cresceu), o que era dito, a boca pequena, faria o próprio Hitler corar de vergonha: os negros não chegavam ao ensino superior em contingente condizente com sua representação no conjunto da sociedade porque eram intelectualmente inferiores.
Nunca me canso de contar essa história: certa vez, em uma festa em um bairro dito "nobre" de São Paulo, ao discutir a política de cotas com racistas empedernidos anotando que com ela, em poucos anos, surgiriam médicos negros – uma raridade no Brasil –, ouvi de algumas daquelas pessoas que "jamais se tratariam com um negro".
Eis que a política do governo Lula, inspirada em legislação inclusiva criada nos Estados Unidos na década de 1960, começaria a reverter esse quadro, fazendo com que os negros e mestiços chegassem a 2011, oito anos depois da lei federal 4.876/2003, ocupando mais do que o triplo das vagas nas universidades que conseguiam até 2003.
Estava ameaçada a hegemonia branca, de classe média e alta e do Sul e do Sudeste no ensino superior. O instrumento que servira, historicamente, para perpetuar as desigualdades sociais mastodônticas de que padece o Brasil agora corria o risco de ser anulado, pois o fator financeiro deixava de ser preponderante para garantir acesso ao ensino superior público, sabidamente o de maior qualidade.
Além disso, para os eleitos pela sorte que não gostavam tanto dos estudos havia as universidades particulares, menos concorridas, mas, ainda assim, exclusivas para a elite, pois custavam caro.
Para essa questão do ensino superior privado, o governo federal criou o Prouni, que financiaria estudantes que não conseguissem chegar à universidade pública mesmo com cotas "raciais", mas essa é outra história. Aqui se fala das cotas para negros.
Ameaçada a hegemonia branca no ensino superior, mecanismos multibilionários foram acionados para matar, no nascedouro, uma política pública que, acima de qualquer outra, tinha capacidade para pôr fim àquela hegemonia ao menos no longo prazo. A comunicação social foi usada para esse fim.
De 2003 em diante, jornais, televisões, revistas, livros, filmes e, acima de tudo, um discurso social opressor foram usados para triturar a ideia de cotas "raciais". Não existia, na grande mídia, espaço para contestação. Criou-se, então, um discurso que invertia os fatos: as cotas que beneficiavam jovens negros e pobres seriam "racistas" (!?).
Um dos primeiros discursos que se levantou foi o do "prejuízo acadêmico". A tese era muito simples: os estudantes negros que estariam sendo beneficiados não teriam capacidade para frequentar uma universidade "de elite" e, assim, rebaixariam a produção acadêmica e a qualidade dos formandos.
Com o passar dos anos, a tese se mostraria uma falácia. Nunca se conseguiu detectar o tal "prejuízo acadêmico". Muito pelo contrário. Além de desistirem muito menos dos cursos nos quais ingressavam, os negros pobres se equipararam ou até superaram as notas dos brancos ricos.
Apesar do discurso massacrante contra as cotas "raciais", porém, mostrou-se surpreendente o entendimento da sociedade de que corrigiam uma situação infame sob todos os aspectos.
Poucas pesquisas de opinião foram feitas para aferir a reação da sociedade ao discurso sobre o caráter supostamente "racista" ou depressor qualitativo das cotas para negros. As poucas que foram feitas, foram abafadas. Agora, porém, após anos sem investigarem oficialmente a questão, surge uma nova pesquisa sobre o tema.
Pesquisa Ibope feita para o jornal O Estado de São Paulo entre os dias 17 e 21 de janeiro de 2013 revelou que quase dois em cada três brasileiros (62% da população) são a favor dos três tipos de cotas em universidades públicas – étnicas, econômicas e para egressos da escola pública.
O apoio a cotas para negros, porém, é maior que o apoio aos três tipos de cotas. Enquanto 62% querem todas as cotas, 64% querem cotas só para negros. Os que aceitam que só existam cotas por critérios financeiros ou de origem escolar, porém, superam todos os grupos, atingindo 77%.
Isso, porém, não significa que esses 77% sejam todos contra as cotas "raciais". A diferença para os 64% que exigem cotas para negros mas aceita se forem só para pobres ou egressos da escola pública é de escassos 13 pontos percentuais.
Ser exclusivamente contra qualquer tipo de cota, porém, é o ponto mais interessante. São Pessoas que ainda acreditam na balela de um "mérito" que tem cor da pele, região do país e nível de renda e que congrega míseros 16% da população.
E note-se que, apesar de amplamente minoritária, essa é a posição que predominou na mídia e entre partidos políticos de oposição durante muito tempo.
Aos poucos, porém, pesquisas não oficiais – ou seja, que não foram divulgadas – foram revelando a partidos como PSDB, DEM, PPS e PSOL e até à mídia (todos, inicialmente, contrários a cotas "raciais") que, se continuassem sendo contra qualquer tipo de cota, mergulhariam em um isolamento ainda maior.
Um dos efeitos disso foi a adoção recentíssima pelo governo tucano de São Paulo de uma política canhestra de cotas que impõe mais tempo de estudo pré-universitário a jovens negros e pobres para supostaente poderem chegar "ao nível" dos brancos ricos, o que as outras experiências com a política afirmativa mostraram ser desnecessário.
O fato é que o tsunami comunicacional que se abateu sobre o país tentando convencê-lo de que seria "racista" uma política pública que combateria a situação absurda de um país de maioria negra (segundo o IBGE) praticamente não ter negros no ensino superior, fracassou fragorosamente.
Chega a ser surpreendente que 64% dos brasileiros apoiem uma política pública que foi tão demonizada e que a mídia até hoje impede que seja defendida equitativamente. Significa que esse contingente esmagador da sociedade teve contato com a tese da elite "racial" e a considerou uma falácia.
O país que a recente pesquisa Ibope revela é um país muito diferente daquele que é apresentado como sendo o Brasil, um país de alienados que não entendem os mecanismos que foram usados para criar tanta injustiça social.
O Brasil, pois, mostra-se muito atento a políticas contra a desigualdade e, eleição após eleição, deixa ver que está decidido a votar em causa própria, ou seja, em políticos e partidos que, por atos e ações, reconhecem que há um sistema de exclusão social erigido para manter a secular iniquidade brasileira.

O MESTRE DAS METÁFORAS FOI ASSASSINADO PELO REGIME MILITAR

Pablo Neruda foi morto por regime militar chileno, defende jornalista 

Desenho que alude ao poeta Pablo Neruda (1904-1973) nas imediações do bairro Bellavista, em Santiago (Chile)
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
"Pablo não morreu de câncer. O médico que o atendia havia dito que viveria por pelo menos cinco ou seis anos. Não resta dúvida de que morreu como consequência do golpe de Estado."
As palavras de Matilde Urrutia, viúva de Pablo Neruda, soaram logo após a morte do poeta chileno, em 1973, e até a sua própria, em 1985.
Apesar da grave denúncia, pouco foi feito até hoje para investigar esse que, se confirmado, seria o mais famoso caso de "desaparição" de opositores ao regime militar chileno (1973-1990).
O autor de "Canto Geral", prêmio Nobel de Literatura de 1971, era amigo do presidente morto, Salvador Allende, com quem compartilhava seu ideário esquerdista.
A Fundação Pablo Neruda, de Santiago, diz oficialmente que não há evidências para supor que Neruda foi assassinado pela ditadura.
Concordou, porém, com a decisão do juiz Mario Carroza, de exumar em março os restos do poeta, que se encontram em sua residência de Isla Negra, hoje um museu em sua homenagem.
"Será um grande avanço nas investigações. Os depoimentos que temos sobre seus últimos dias coincidem só até certo ponto, depois há muitas contradições. A exumação pode dar a resposta final para o mistério", diz o jornalista e historiador espanhol Mario Amorós à Folha.
SOMBRAS
Amorós é autor de "Sombras Sobre Isla Negra" (ed. Zeta), livro-reportagem em que são ouvidos os sobreviventes do episódio, confrontados com documentação sobre as viagens e a internação de Neruda.
Recém-lançada, a obra de Amorós está sendo usada na causa aberta na Justiça.
Neruda tinha um câncer de próstata. No dia 19 de setembro, apenas oito dias depois do ataque ao Palácio de la Moneda, passou mal. Sua viúva depois diria que o golpe e a morte violenta do cantor Victor Jara, vítima do regime, o abalaram muito e fizeram sua saúde deteriorar-se.
Foi, então, levado à Clínica Santa María, de Santiago. As pessoas que o viram aí declararam a Amorós que Neruda não parecia um doente terminal. No dia 22, porque estava muito nervoso, aplicaram-lhe um calmante. Nunca mais acordou.
"São muitas as evidências de que pode ter sido um assassinato. Neruda estava com uma viagem marcada para o México daí a alguns dias, onde falaria num evento político e tinha preparado um discurso sobre a grave situação do Chile", diz Amorós.
Quando Matilde voltou à La Chascona, a residência santiagueña do casal, ainda hoje mantida como era e aberta à visitação pública, encontrou o lugar revirado e saqueado. A polícia prontamente identificou o episódio com a ação de ladrões.
Com a imprensa pressionada pelo governo, as denúncias de Matilde tiveram pouco eco na época.
Há alguns anos, porém, o caso começou a voltar à tona. Sobre a clínica, passaram a haver suspeitas de assassinatos, como o do ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva (1964-1970), internado ali por um simples procedimento e morto misteriosamente nos anos 1980.

João Wainer/Folhapress
Desenho que alude ao poeta Pablo Neruda (1904-1973) nas imediações do bairro Bellavista, em Santiago (Chile)
CHOFER
Em maio de 2011, o chofer do casal Neruda, Manuel Araya, deu uma entrevista à revista mexicana "Proceso" em que relatava o bom estado de Neruda e a existência de chamadas com ameaças à sua casa, em Isla Negra.
Araya, então um jovem de 27 anos, hoje defende a versão do assassinato e é uma das principais fontes de Amorós.
A investigação da morte de Neruda promete ocupar bom espaço durante o aniversário de 40 anos do golpe militar.
O resultado da exumação deve sair na mesma época. Também recentemente, alguns casos famosos tiveram importantes avanços, como o julgamento dos responsáveis pela morte de Victor Jara.
"O Chile demorou muito para tratar o tema de modo transparente e distanciado, afinal, a ditadura foi um trauma grande, que levou muitos anos e deixou várias marcas. Agora é a hora de as verdades aparecerem", diz Amorós